Diana Simões
Vozes póstumas são frequentemente usadas para contar histórias. No romance Deus-Dará (2016), de Alexandra Lucas Coelho, uma voz híbrida (ao mesmo tempo brasileira e portuguesa) narra as vidas de sete personagens no Rio de Janeiro contemporâneo. O narrador omnisciente é Nicolau Coelho, capitão de uma das naus de Pedro Álvares Cabral que chegaram ao Brasil em 1500, e o primeiro a contactar com a população nativa. Esta revelação, tardia, explica a sua vasta experiência, fundada em séculos de observações, tornando-o num poderoso agente de revisão e reinterpretação histórica, educando os leitores, por exemplo, sobre o racismo sistémico assente em séculos de escravização e discriminação, ou desconstruindo mitos coloniais, como o lusotropicalismo, de Gilberto Freyre. Este artigo parte do argumento de Erwin Snauwaert de que a morte transforma o narrador numa figura de autoridade que assina um contrato de autenticidade (188–92). Nicolau mostra ter sido testemunha das relações transatlânticas (pós-)coloniais entre Brasil e Portugal por mais de 500 anos, pelo que a sua voz póstuma tem a capacidade de descontruir dogmas, forçando os leitores a repensar a sua própria perspetiva da História.